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Estes são trechos de poema publicado em 1929, que descreve a viagem do poeta modernista Raul Bopp de São Paulo a Curitiba, numa época em que havia pouco mais de 100 km de estradas trafegáveis entre as duas cidades. Desafiado pelo Automóvel Clube de São Paulo, Bopp se aventurou nos seguintes versos:
Deixei a cidade sumida no silêncio da madrugada
Ficaram para trás os estirões de asfalto e as ruas tecidas de ferro e de cimento armado.
Agora o subúrbio. Pinheiros e o Butantã. Sombras largas abraçando a cintura das casas.
Sopra um vento insistente. Mãos no fundo dos bolsos.
Rolam, sob pneumáticos rápidos, trechos encaroçados de macadame.
São Paulo vai fugindo, amassada no fundo da memória, embrulhada de névoa, faiscante e encolhida de frio.
Estiram-se agora quilômetros de estrada, batida e larga, enroscada nos morros e aterros.
No fundo indeciso e longínquo, se derrama a primeira nódoa triste da manhã.
Galos ao longe.
Cruzam, rápidos, rumo à cidade, caminhões carregados de cebolas.
Fazendas encapuçadas espiam das janelas.
Dia claro.
Num volteamento da estrada avista-se Cotia, friorenta e vermelha, acordando com a primeira ducha de sol.
***
Tomo apontamentos para alguma crônica rodoviária.
Velocímetro: km. 36.
As estradas melhoram. Saibro batido. Bueiros de manilha.
Nos lados, extensões de cercas guardando a vegetação disciplinada.
Retangulam-se em lavouras os antigos potreiros de pasto dos animais de carroça.
O motor vai substituindo os músculos.
(Fase da nossa evolução rural).
***
Nas estradas boas sofre-se uma aflição de velocidade.
Parece que atrás de cada curva há espectadores ansiosos esperando a gente de relógio na mão.
O motor alucinado abafa na corrida um surdo rumor de aplausos anônimos.
São Roque passou. Uma mancha de casaria esparramada na paisagem.
Esfarelou-se em dois minutos na memória. Uns italianinhos a cavalo. A praça. Uma igreja colonial. Casas e casas.
Num canto de rua, uma bomba de gasolina, de pé, às ordens.
***
Em Itapetininga. Km. 177.
Cidade como todas as outras, para quem passa depressa.
Uma praça com um bustinho. Ruas geometrizadas e varridas.
Ajuntam-se curiosos. Comentários sobre marcas de automóveis.
O chofer esparrama a gurizada que apalpa o pescoço do nosso "Studebaker".
Notas avulsas:
A gasolina vai subindo de preço.
Já o velho Saint-Hilaire se queixava que em Itapetininga o milho era mais caro, isso no tempo em que uma mula de boa andadura chegava a custar 3$500.
De Itapetinga a Capão Bonito a distância é de 64 quilômetros.
Passamos o rio Paranapanema e logo depois o rio das Almas.
Com essas estradas magníficas, raspadas à flor da terra, em uma hora e pico estamos à porta de um hotel.
***
O hoteleiro é uma figura compassada, de longos bigodes, alto e poliédrico. Esfrega as mãos e indaga de alguns assuntos, com um interesse amável.
Pede uma pacienciazinha, que o almoço não demora.
Na sala do comedor, homens de espora e lenço no pescoço, conversam em voz alta.
Cusparadas de guancho pelo soalho.
Aproveito para colher algumas informações sobre o melhor itinerário a Curitiba.
O traçado oficial, mais direto e mais curto, passando pelas bandas do Serro Azul, está ainda longe de ser entregue ao tráfego.
Há apenas um trecho de cinco léguas, definitivamente pronto a São José do Guapiara e pedaços de um outro, em construção, até o vilarejo de Apeahy.
Para diante não há estradas. Há trilhas de caminheiros. Matas e serras íngremes.
Passa das 11 e meia.
***
De Buri, começam os caminhos ruins.
Rampas fortes e buracos.
Contorna-se, logo à saída, uma capoeira garrancheta.
Árvorezinhas, de muletas, trepam pelos barrancos, relas e corcundas.
-Ê moço. Essa estrada é a que vai pá Rondinha ?
-É sim sinhô.
-Não tem errada ?
- Não tem, não sinhô. O'ie, ali naquela bassoreira, num trôça pula dereita, não.
Garre um artinho que vai dá logo lá, toda a vida.
Aquele toda a vida arrastado no fim da frase com um gesto longo de distâncias, indicando o rumo, é sinal de estrada certa.
***
Desembarcamos agora por uma baixada funda.
A areia, enrugada de raiva, morde o automóvel devagarinho.
Filtra-se ao longe, das folharias, um clarão num repecho da serra.
Jeito de queimada de campo.
Mais uns minutos e paramos, no alto:
Uma festa de fogos para os olhos.
As labaredas se enrolam pela polpa do mato, rabeando pelas toiceiras.
No fundo, um pinheiro, como uma taça negra, imperturbável e de pé, ergue o último brinde às estrelas.
Com algumas léguas de serra e mais 23 quilômetros de estrada larga, avistamos Itararé.
Casaria debulhada num chapadão de coxilha.
Cenários costurados de névoa. Lampeõezinhos de pijama no alto dos postes.
Entramos devagar pelas ruas, procurando um letreiro de hotel, com um holofote móvel.
Mulatos de violões alegres nos indicam uma casa de esquina.
Quase meia-noite.
Doem, dentro dos ossos, 434 quilômetros de marcha.
Pedimos um quarto para duas pessoas.
E outro para o automóvel.
Requenta-se um cafezinho no fogareiro.
As criadinhas estalam os chinelos, mobilizando fronhas e travesseiros de emergência.
Caio pelos cobertores, com os olhos amassados de sono.
Raul Bopp
Deixei a cidade sumida no silêncio da madrugada
Ficaram para trás os estirões de asfalto e as ruas tecidas de ferro e de cimento armado.
Agora o subúrbio. Pinheiros e o Butantã. Sombras largas abraçando a cintura das casas.
Sopra um vento insistente. Mãos no fundo dos bolsos.
Rolam, sob pneumáticos rápidos, trechos encaroçados de macadame.
São Paulo vai fugindo, amassada no fundo da memória, embrulhada de névoa, faiscante e encolhida de frio.
Estiram-se agora quilômetros de estrada, batida e larga, enroscada nos morros e aterros.
No fundo indeciso e longínquo, se derrama a primeira nódoa triste da manhã.
Galos ao longe.
Cruzam, rápidos, rumo à cidade, caminhões carregados de cebolas.
Fazendas encapuçadas espiam das janelas.
Dia claro.
Num volteamento da estrada avista-se Cotia, friorenta e vermelha, acordando com a primeira ducha de sol.
***
Tomo apontamentos para alguma crônica rodoviária.
Velocímetro: km. 36.
As estradas melhoram. Saibro batido. Bueiros de manilha.
Nos lados, extensões de cercas guardando a vegetação disciplinada.
Retangulam-se em lavouras os antigos potreiros de pasto dos animais de carroça.
O motor vai substituindo os músculos.
(Fase da nossa evolução rural).
***
Nas estradas boas sofre-se uma aflição de velocidade.
Parece que atrás de cada curva há espectadores ansiosos esperando a gente de relógio na mão.
O motor alucinado abafa na corrida um surdo rumor de aplausos anônimos.
São Roque passou. Uma mancha de casaria esparramada na paisagem.
Esfarelou-se em dois minutos na memória. Uns italianinhos a cavalo. A praça. Uma igreja colonial. Casas e casas.
Num canto de rua, uma bomba de gasolina, de pé, às ordens.
***
Em Itapetininga. Km. 177.
Cidade como todas as outras, para quem passa depressa.
Uma praça com um bustinho. Ruas geometrizadas e varridas.
Ajuntam-se curiosos. Comentários sobre marcas de automóveis.
O chofer esparrama a gurizada que apalpa o pescoço do nosso "Studebaker".
Notas avulsas:
A gasolina vai subindo de preço.
Já o velho Saint-Hilaire se queixava que em Itapetininga o milho era mais caro, isso no tempo em que uma mula de boa andadura chegava a custar 3$500.
De Itapetinga a Capão Bonito a distância é de 64 quilômetros.
Passamos o rio Paranapanema e logo depois o rio das Almas.
Com essas estradas magníficas, raspadas à flor da terra, em uma hora e pico estamos à porta de um hotel.
***
O hoteleiro é uma figura compassada, de longos bigodes, alto e poliédrico. Esfrega as mãos e indaga de alguns assuntos, com um interesse amável.
Pede uma pacienciazinha, que o almoço não demora.
Na sala do comedor, homens de espora e lenço no pescoço, conversam em voz alta.
Cusparadas de guancho pelo soalho.
Aproveito para colher algumas informações sobre o melhor itinerário a Curitiba.
O traçado oficial, mais direto e mais curto, passando pelas bandas do Serro Azul, está ainda longe de ser entregue ao tráfego.
Há apenas um trecho de cinco léguas, definitivamente pronto a São José do Guapiara e pedaços de um outro, em construção, até o vilarejo de Apeahy.
Para diante não há estradas. Há trilhas de caminheiros. Matas e serras íngremes.
Passa das 11 e meia.
***
De Buri, começam os caminhos ruins.
Rampas fortes e buracos.
Contorna-se, logo à saída, uma capoeira garrancheta.
Árvorezinhas, de muletas, trepam pelos barrancos, relas e corcundas.
-Ê moço. Essa estrada é a que vai pá Rondinha ?
-É sim sinhô.
-Não tem errada ?
- Não tem, não sinhô. O'ie, ali naquela bassoreira, num trôça pula dereita, não.
Garre um artinho que vai dá logo lá, toda a vida.
Aquele toda a vida arrastado no fim da frase com um gesto longo de distâncias, indicando o rumo, é sinal de estrada certa.
***
Desembarcamos agora por uma baixada funda.
A areia, enrugada de raiva, morde o automóvel devagarinho.
Filtra-se ao longe, das folharias, um clarão num repecho da serra.
Jeito de queimada de campo.
Mais uns minutos e paramos, no alto:
Uma festa de fogos para os olhos.
As labaredas se enrolam pela polpa do mato, rabeando pelas toiceiras.
No fundo, um pinheiro, como uma taça negra, imperturbável e de pé, ergue o último brinde às estrelas.
Com algumas léguas de serra e mais 23 quilômetros de estrada larga, avistamos Itararé.
Casaria debulhada num chapadão de coxilha.
Cenários costurados de névoa. Lampeõezinhos de pijama no alto dos postes.
Entramos devagar pelas ruas, procurando um letreiro de hotel, com um holofote móvel.
Mulatos de violões alegres nos indicam uma casa de esquina.
Quase meia-noite.
Doem, dentro dos ossos, 434 quilômetros de marcha.
Pedimos um quarto para duas pessoas.
E outro para o automóvel.
Requenta-se um cafezinho no fogareiro.
As criadinhas estalam os chinelos, mobilizando fronhas e travesseiros de emergência.
Caio pelos cobertores, com os olhos amassados de sono.
Raul Bopp
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