segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

MUTARELLI

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Lourenço Mutarelli é um cara que deixa qualquer pessoa feliz. Quem está acostumado com suas histórias lúgubres e personagens desenganados, rancorosos, vingativos ou simplesmente melancólicos, não pode imaginar que por trás delas se esconde um autor que adora comprar bonequinhos para brincar no final das tardes com seu filho. Ao chegar na casinha simpática no distante bairro do Tatuapé (São Paulo), a equipe de CyberComix se admirou com o ar prosaico da morada de um dos mais prolíficos autores do quadrinho nacional. Com seis álbuns editados por editoras diversas (o último, O Dobro de Cinco, acaba de ser lançado pela Devir), Mutarelli trabalha diariamente em uma escrivaninha em seu quarto. Nesta entrevista, ele fala sobre seu último álbum, sua vida e de onde tira suas idéias.
Às perguntas!

Cyber Comix - De onde você tira suas idéias?
Mutarelli - Eu acho que elas acabam saindo da fermentação, de ficar pensando muita coisa o tempo todo. Depois que termino uma história, eu consigo identificar de onde vem determinada coisa. É uma soma de coisas que eu vi ou vivi e que se misturam e aparecem como uma idéia.

Cyber Comix - Algum conhecido seu já se reconheceu em uma história?
Mutarelli - Em O Dobro de Cinco tem dois bandidos que foram baseados em dois amigos. Eles não gostaram muito, porque eu exagerei um pouco o lado cruel deles.
Heinar - Você já perdeu amigo por causa de uma história?
Mutarelli -Não, não perdi, porque eu comecei com essas histórias onde eu sou eu mesmo há pouco tempo. Foi depois que a Lu, minha mulher, fez uma história sobre um sobrinho nosso e eu vi como era forte aquilo. Aí eu comecei com as histórias meio autobiográficas. Mas as melhores histórias que eu tenho pra contar eu não posso, porque eu vou colocar pessoas que vão acabar sendo julgadas pelos leitores. Eu fiz um trabalho para a série Mini-Tonto com um amigo como personagem. Mas ele não vai poder falar nada, porque é uma coisa de respeito. E eu tenho um livro póstumo que conta umas relações sexuais que eu tive. Tá pronto, eu falo mesmo, dou nome aos bois. Mas isso é só pra depois que eu morrer.

Cyber Comix - Você acha que o seu trabalho está mais leve hoje?
Mutarelli - Desgraçados é o album que os adolescentes mais gostam. É minha fase mais Heavy Metal. Mas eu não gosto desse trabalho. Eu acho que tudo é meio exagerado. Hoje eu estou mais sutil. Talvez porque eu esteja vivendo um momento que eu consigo lidar melhor com algumas coisas que eu não conseguia naquela época. "Transubstanciação"... eu não sei como fiz aquilo. Eu nunca mais li esse álbum. Era o que eu mais gostava, mas eu imagino que seja pesado para quem pega para ler descompromissadamente. Gosto bastante das coisas que tenho feito para CyberComix. Tem uma história em Sequelas, Resignação... acho ela muito pesada, talvez porque eu vivi uma coisa muito parecida naquele momento.

Cyber Comix - A gente vê muito moleque, seus fãs, que fazem histórias bem parecidas com as suas, mas eles batem muito na tecla do desespero. Parece que eles acham que têm uma obrigação de ser deprê. Não vejo nessas histórias o toque de humor que eu vejo em todas as suas histórias, onde sempre se encontram umas piadas nos cantinhos. Eu te acho uma pessoa engraçada, apesar de você tentar vender o peixe de que não curte humor.
Mutarelli - Eu curto, sim. Aqui em casa eu pulo da euforia pra depressão muito rápido. Quando eu tou eufórico nem eu me aguento. Mas eu gosto do humor que ridiculariza a nossa espécie, não o discriminatório, que faz piadas com alguém porque ele é bicha, preto ou judeu. Eu gosto de brincar com o lado patético que todo mundo tem. Eu não sou um cara infeliz. Nunca preguei a infelicidade como modo de vida. Mas, quando estou na escrivaninha trabalhando, eu mergulho fundo e vou atrás disso. Eu às vezes procuro sofrer mais do que eu necessito. Teve uma época em que eu tive um problema de saúde. Eu só me sentia bem fisicamente quando eu estava deprimido. Aí não me dava dor, não me dava tremor, nada desagradável. Eu buscava a tristeza para me sentir bem. De certa forma eu ainda alimento isso. Mas eu tomo muito cuidado pra não contaminar as pessoas com quem eu convivo. Eu não sou esse monstro que as pessoas pensam que eu sou, ou acham que eu quero que pensem. Teve uma vez que eu e o Marcatti fomos para um evento de quadrinhos, disseram que iam arranjar um hotel melhor pra gente, só que mais afastado da cidade, e colocaram a gente numa clínica de toxicômanos. Teve uma palestra em Curitiba que foi cancelada porque um cara disse que eu era muito violento e tinha batido num fã. A mulher ligou pro Marcatti e ele brincou: "não, ele é muito pior, ele quase matou o cara". Só que ela acreditou e cancelou a palestra.

Cyber Comix - Qual o melhor meio pros fãs entrarem em contato com você? Por carta?
Mutarelli - Eu não respondo carta. Já recebi coisas muito legais e não respondi. Acho melhor não me conhecer. Eu me decepcionei muito quando conheci pessoas de quem eu admirava o trabalho.

Cyber Comix - Onde você conheceu sua mulher Lucimar?
Mutarelli - Isso é legal. Eu e a Lu nos encaixamos de uma forma como poucas pessoas se encontram, pode parecer babaca mas é verdade. A maneira que a gente se encontrou foi muito engraçada. Meu pai tava na UTI fazia um mês e eu não saia de lá. Eu tava trancado lá há um tempão, sem sair pra nada. Minha mãe me mandou dar uma volta para espairecer. Aí apareceu o Marcatti me convidando para uma palestra que ia ter na gibiteca com ele, o Glauco Matoso e o Angeli. Eu fui e o Angeli, pra variar, não foi. E a minha mulher achava o Angeli lindo. Acha ainda.
Ela pensou que eu era o Angeli e perguntou "Angeli, você está do avesso?"

Cyber Comix - Como suas histórias são muito íntimas, dá a impressão que são todas autobiográficas. Dá uma certa agonia. No final fica a impressão que você vai se matar amanhã.
Mutarelli - Eu tenho uma teoria, que eu nunca poderia falar numa entrevista, mas eu vou falar. Acho que se eu não fizesse essas histórias é provavel que isso acontecesse. Toda essa disciplina, essas histórias que eu construo só pra poder acabar com um personagem, é um mecanismo parecido com o de um serial killer. Acho que, se eu não tivesse esse canal, eu seria uma pessoa totalmente perdida.

Cyber Comix - Eu tenho um nome pra isso: Complexo de Sheherazade. A Sheherazade tinha que contar uma historia, senão morria. Vários cartunistas têm isso, fazem HQ porque se não fizessem eles piravam. A coisa não dá dinheiro, é desgastante, mas eles continuam fazendo.
Mutarelli - É verdade. Quando eu tenho trabalho de RPG pra fazer e me afasto dos quadrinhos, eu fico muito mais agressivo. A relação em casa não fica boa, as coisas comecam a se misturar. Quando eu posso fazer, descarregar, fica tudo bem.

Cyber Comix - Eu ia perguntar qual era sua doença mas, pelo que você disse, era psicose maníaco-depressiva.
Mutarelli - Teve uns agravantes no meio do caminho. A porra de um negócio que tem o nome ridículo de Síndrome do Pânico. Eu fiquei dois anos sofrendo ataques sem saber o que era. Fui pirando muito antes de chegar nisso. Quando descobri o que era e comecei a tratar eu já estava no fundo do poço. Tinha que ser carregado até o carro para ir três vezes no psicólogo, no psiquiatra. Não era medo de alguma coisa, de andar de elevador, entrar em carro, como muita gente pensa. É uma coisa abstrata. Quando você comeca a melhorar, começa a ter medo de determinadas coisas. O primeiro ataque que eu tive foi num restaurante, aí eu não entrava mais em restaurante. Teve uma coisa que para mim teve muito a ver. Eu ficava deitado sempre no chão perto de uma TV e passou um documentário do Jacques Cousteau em que eles estavam explorando umas cavernas submersas que ninguém nunca tinha explorado. Eu me identifiquei com aquilo e resolvi mergulhar na minha doença. Eu tinha muito medo da minha agressividade. Eu tinha medo do que eu podia fazer com meus pais, com as pessoas que estavam perto de mim. Eu perdia o controle totalmente. Antes disso eu já tinha problemas, mas aí juntou tudo. Quando comecei a melhorar eu fiz "Transubstanciação".

Cyber Comix -Mesmo nas primeiras histórias já tinha esse lance de psicotrópicos, não tinha?
Mutarelli - Eu tomo psicotrópico há muitos anos. Eu tenho um fetiche com remédio, um prazer quase sexual.

Cyber Comix - Você já pensou em fazer histórias pra crianças?
Mutarelli - Já. Tenho muita vontade. O unico problema é que as histórias pra crianças que eu esbocei são piores que as adultas. Porque criança é muito pior que adulto. Adulto é uma criança que foi domada. Eles são muito cruéis.

Cyber Comix - Conta direito a história de remédio pro pessoal não confundir com sua fase farmacêutica. Você pintava com remédio?
Mutarelli - Pintava. Minha mãe fazia enxovais de bebê, cortinas, panos decorados e usava tinta acrílica. Eu sabia que podia pintar com aquilo se ela não visse ou se a tinta estivesse no fim. Mas eram poucas cores. Então eu comecava a fuçar nos remédios. Desde bem pequeno eu sou fascinado por remédio. Eu tomava Melhoral Infantil porque achava gostoso, tomava escondido. Aí eu via as cores da Violeta Genciana... Colubiasol tinha uma cor linda.

Cyber Comics - Me explica essa foto aqui de você com uns seis anos lendo um gibi da Múmia. Foi esse gibi que transformou essa gracinha da mamãe no Mutarelli que a gente conhece?
Mutarelli - Eu só lia isso. Eu era fascinado por monstro. Briguei uma vez com o jornaleiro porque ele não quis me vender a revista do Zé do Caixão. Saí da banca jurando que ia fazer minha própria revistinha, mas logo vi que era muito difícil. Desde muito pequeno eu tinha fascinação por essas coisas. Quando eu ia para a casa da minha vó, a gente passava em frente a AACD e eu ficava impressionado com os deficientes jogando bola, porque parecia que só eu estava vendo aquilo. Todo mundo passava e ninguem olhava, agindo normalmente. Eu tenho um mundo meio monstruoso.

Cyber Comics - Aliás, nas suas histórias você bateu algum recorde mundial de aparições de deficientes físicos.
Mutarelli - Tem uma história que eu não ia contar, porque envolve uma pessoa por quem eu tenho muito carinho, uma pessoa muito especial. Eu estava pra sair da farmácia. Tinha conseguido publicar no suplemento Mau da revista Animal e não aguentava mais aquilo. E tinha uma menina linda que passava por ali. Eu consegui chegar nela justo no dia que ia ter o lançamento da Animal. Eu convidei e ela foi, leu minha história, que era a do Cãozinho sem Pernas. Só que, quando eu me aproximei e pus a mão nela pra falar alguma coisa mais íntima, eu quase pulei porque a perna dela era gelada. Era uma prótese. Foi muita coincidência. Mas aí a gente namorou um tempo, foi legal.

Cyber Comics - Qual a trilha sonora de Lourenço Mutarelli?
Mutarelli - Eu gosto de ouvir coisas melancólicas. Atahualpa Yupanqui, cantores de tango. Nacional, eu gosto de Elomar. Gosto de coisas com raiz, América Latina. Eu não tenho raiz nenhuma. Eu cresci ouvindo Carlos Gardel e Roberto Carlos. Ouço muito John Cale, Velvet Underground. Gosto de músicas faladas... elas me deixam introspectivo e ajudam a me concentrar.

Pirateado do finado Malocabilly.
Que Deus proteja os Malocas!!
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