quarta-feira, 5 de março de 2008

EU, O DIABO

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Adoro cheiro de pimenta vermelha fritada no azeite
Acredito em mim na maior parte do tempo
No venerado Corão, meu nome aparece 52 vezes
Tudo dito a meu respeito pode ser verdade mesmo
A forma de se dizer é que me magoa um tanto
E no entanto, a mágoa é meu modo de viver
Alá criou Adão antes nossos olhos de anjo
Depois mandou-nos inclinarmos praquele ser
Fui o único, mas recusei a agachar-me
Diante de uma criatura moldada do lodo
Logo eu que tive o nobre fogo como carne
Não me humilhei e Alá achou-me orgulhoso
“Desça do céu, não é lugar pra sonhos de grandeza”
“Deixa-me em troca viver até o dia do juízo final”
Alá concedeu e fiz um juramento da profundeza:
Tentaria pra sempre os filhos daquele animal
Por causa do qual fui por demais castigado
Alá combinou comigo despachar pra a invernada
Toda rês que conseguisse corromper de seu gado
Inútil dizer que mantivemos a palavra empenhada
Se todo mundo fosse direto pro paraíso
Não haveria o medo e a vida seria incontrolável
Devo lembrar-lhes: o grande ego é meu maior castigo
Da minha injusta queda a causa irrefutável
Se posso assumir a forma que bem entendo
Especialmente sob o agradável aspecto de uma boazuda
Por que insistem em me pintar horrendo
De chifre, rabo e cara coberta de verruga ?
Eu, criatura do fogo: o mais nobre dos elementos
Único anjo a rebelar-se contra o absurdo
De venerar um boneco recheado de excrementos
Aprendi como um Deus pode ser duro
Sofri a dor indescritível do exílio
E perdi a graça de Alá: virei o ex-favorito
Tornei-me objeto de pragas e de lamúrias, o colírio
Responsável até pelas crianças brincarem com o pirulito
E por seus pais peidarem em público
Só Alá, em sua incomensurável sabedoria,
Compreenderá o que falo em qualquer púlpito:
Não ensinaste ao homem a primazia
Ao fazer todos anjos menos um
Se postarem diante do recém-nascido ?
Agora eles se adoram em meio a frenético baticum
E terminarão por Te tornar um deus proscrito
E eu é que levarei a culpa nos anais !
Ia-lhes contar uma estória de amor verdadeiro
Pra terminar, mas acabou de ficar tarde demais
Vou descer pela escada privativa e defecar no banheiro vermelho

Orhan Pamuk e Sérgio Viralobos
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