quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A NOVELHA DO POLACO DA BARREIRINHA, CAPÍTULO 8!!

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O DIA QUE EU MATEI O WILSON MARTINS

de Antonio Thadeu Wojciechowski


Capítulo 8

Pelo amor de Deus, Wilson.

Não é um mezanino do inferno nem porta
A outros planos do Céu. O limbo guarda as almas
De crianças sem batismo, pois Jesus se importa
E defende essa causa e também mantém salvas
As de todos aqueles que morreram antes
Dele morrer na cruz, mas foram bons e justos.
“Aqui não sereis nada. Andarão distantes
De vós significados e sons. Altos custos
E sacrifícios pagareis até que cumprais a pena
De mil anos que, a mim, pareceu bem pequena.

Caminhai em silêncio e em sua direção,
Quando, enfim, vossa mente o encontrar, tereis,
Então, cumprido parte de vossa missão.
Despi-vos da ambição! Sabei que nada sabeis
E podereis cruzar a ponte que separa
A vossa voz do cerne do conhecimento.
Ide em paz, Wilson. Deus vos deu essência rara
Como objetivo claro. Tal alistamento
Seja motivação e alegria à vossa alma.
Andai em linha reta, em frente e sem pausa."

Wilson abriu a boca e nenhum som se ouviu.
“Caminhai em silêncio e para o silêncio,
Se quereis ser artista, no prazo de mil.
A divina mensagem passei por extenso.
Começai já a jornada. Tendes longo trecho
Até o ponto final, onde teus pensamentos
Deixarão de existir. Não tenho outro desfecho
Para nossa conversa. Só arrependimentos
Sinceros bastarão, mas segui vosso rumo,
Pois eu, pela entrada do inferno, agora, sumo!”

Virgílio, por sentença divina ordenado,
Lança-se à travessia que pela vez segunda (1)
Terá que realizar, mas não acompanhado.
Wilson vê à sua frente a estrada que se afunda
E dá o primeiro passo em direção ao nada.
Só, Deus que a tudo assiste, ajoelha-se a rezar
E pede em oração, a Si Mesmo enviada,
Que eles possam ao fim da jornada chegar.
“Vão comigo!” E, alçando vôo, Deus deu-se aos céus
De outros cuidados, outros incontáveis réus.

Wilson caminha, grita e nenhum som se escuta.
Tenta uma, duas, três, mil vezes até que, exausto,
Desiste. Gostaria de ter à mão cicuta
Ou o veneno que tão bem preparou Fausto, (2)
Mas está só, sem som, sem sol, sem sombra, sem...
Suas pernas vão levá-lo aonde nunca esteve.
Um lugar muito além da imaginação vem
Ao seu encontro a cada passo. Sente sede
E a sede que sente não é essa que a garganta
Seca; mas, sim, aquela que água não adianta.

Sente no peito as chamas do fogo do inferno
E a angústia de mil e uma noites em claro.
Mas não há nada ali, só o vazio sempiterno
De sua solidão muda, surda, sem olfato,
E sem tato. Seus olhos vêem, porém, enxergam
Apenas a longa estrada, perdida entre a treva
E a luz. A tudo mais, seus mesmos olhos cegam,
Para que o caminhar seja de real entrega,
Nesse lapso de tempo e espaço por Deus criado
E mantido, para que o réu cumpra o seu fado.

Ao final do terceiro dia, Wilson cumpriu
Metade de sua pena. Nos quinhentos anos,
Que passou caminhando sem soltar um pio,
Sofreu todas as dores que estavam nos planos
Divinos, destinados à sua redenção.
Mas, enfim, silenciou sua mente e pode ouvir,
Pela primeira vez, a voz do coração.
O que ouviu não pode entender, mas sentir.
E, sentindo, ganhou sentido o que ouviu:
“O que são quinhentos anos pra quem vai a mil?”

Sorriu, enquanto os sons se repetiam no espaço.
“São rimas”, disse. “Hei de usá-las com rigor,
Sob risco de, em não o fazendo, perder laço
Com o ritmo que ao verso dá alma e vigor.”
Ouvindo tudo, Deus, poeta maior, aplaude
O pequeno progresso: “Nasce um novo artista.
Devolvo-lhe os sentidos, pra que não lhe falte
Nada nesses quinhentos anos pela pista.
Andará bem melhor e aprenderá com quantos
Sofrimentos faço um poeta de mil encantos.”

“Eu vejo, escuto, sinto. O que está acontecendo?
A estrada não é a mesma e nem mesmo sou eu?
Não pode ser, meus olhos mentem. Estou vendo
Leminski e Paulo Francis, um defensor meu, (3)
Vestindo togas gregas e a rir como amigos?
Mas eles não me vêem! Como é possível isso?
Posso ouvi-los tão bem. Eu vou lhes dar ouvidos.”
“O Wilson tinha lá suas razões, mas nem Cristo
Agradou a todos, Francis. Creio que ele sofreu
Muito para manter-se fiel ao que escreveu.

Acho que ele teria que viver mais quinhentos
Anos pra começar a entender os meus poemas
E outros tantos pro Catatau. Meus sentimentos (4)
Em relação ao Wilson, não foram problemas
Insolúveis. Apenas, lhe deixei bem claro,
Que a poesia que eu fazia não faz a alma vazia.”
“Que homenagem ao nosso Augusto, hein, polaco?!”(5)
“Esse merece o céu em que está para sempre.
Jamais sua lira soou desafinadamente.”

“Mas, Leminski, voltando ao falecido assunto,
O Wilson me foi útil, durante um bom tempo.
Trocamos elogios. Porém, se pouco é muito,
Algumas vezes, lembro, com constrangimento,
Dos meus rompantes quixotescos no jornal.”
“Ah, Francis, alguns erros todos cometemos.
Gostaria que ele estivesse neste local,
Agora, pra lhe darmos o que não pudemos
Dar-lhe em vida: Perdão, carinho e compreensão!”
“E alguns chutes na bunda, meu querido irmão!”

Rindo os dois, a pauladas, matam a saudade,
O assunto, e dão no pé, sem deixar nenhum rastro.
Wilson sente-se muito só, pois a verdade
Que acabara de ouvir, tirou-lhe todo o lastro,
Deixando-o atordoado e bastante confuso.
Uma alcatéia de remorsos uiva, morde
E, mostrando suas garras, como um louco fuso,
Põe-se a desfiar a trama que o passado acolhe.
E Wilson chora lágrimas ininterruptas,
Que, chegando ao chão, se tornam flores múltiplas.



(1) Na Divina Comédia, Virgílio é o guia de Dante na travessia do inferno ao céu.

(2) No livro Fausto, de Goethe, o protagonista tenta se suicidar com o veneno que prepara em uma taça.

(3) Paulo Leminski, genial poeta curitibano que polemizou com Wilson Martins, e Paulo Francis, radical pensador, jornalista internacional e escritor polêmico, um conservador revolucionário.

(4) Catatau é a obra mais polêmica de Paulo Leminski. Está por merecer um estudo menos superficial do que esses que andam por aí.

(5) Leminski homenageou Augusto “parodiando” o seu magistral verso: “Fazia frio, e o frio que fazia/ não era esse que a carne nos conforta/...
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